Monday, September 10, 2007

'sou um piolho estético'

A ideia de ler quinhentas e algumas páginas sobre o conflito interior de um criminoso que não se considera como tal pode não ser apelativa - mas a partir das primeiras páginas, pouco apelativa é a ideia de o pôr de parte. Adorei. Tudo. Não me sinto muito confortável a escrever o que quer que seja sobre a que é considerada uma das maiores obras da literatura mundial, porque afinal, quem sou eu, mas a opinião é para ser dada, afinal. É uma ideia pouco usual vermos uma história pelos olhos de um personagem pouco... como hei-de dizer, não é o habitual personagem principal moralmente correcto, que executa todas as acções pelo bem, incorruptível, inocente. É um personagem principal que é moralmente correcto, que executa todas as acções pelo bem - mas de acordo com a sua própria moral e com os seus próprios ideais de "um bem melhor". Que não são os commumente pensados pela sociedade. Não aceita que o que cometeu foi um crime na verdadeira extensão da palavra, mas sim um pequeno passo para atingir algo maior, melhor para si mesmo. Que se o único obstáculo para uma futura carreira brilhante era a falta de dinheiro, matar alguém de menor importância, que se servia do desespero dos outros para obter lucros (uma tal pessoa "vulgar"), devia ser visto como moralmente aceitável. É um ser incapaz de amar, consumido pelos seus próprios delírios, medos, incapaz de confiar em alguém depois de assassinar. O que, por vezes, se consegue tornar ligeiramente irritante, porque nós sabemos que todas as pessoas (ou quase todas) que o rodeiam e querem ajudar é pelo simples prazer de ajudar, e custa ver toda essa ajuda rejeitada por manias da perseguição infundadas.

O personagem que mais gostei foi o que pode ser considerado o mais desprezível - Svidrigáilov (nome que tive uma dificuldade enorme em conseguir ler bem à primeira). Talvez pela naturalidade com que falava da sua própria depravação, o não negar esse facto, e falar de enormidades até com um laivozinho de humor. Tornava-o humano. E quando contava como a Marfa Petróvna lhe aparecia, nas ocasiões mais parvas e a fazer os comentários mais inverosímeis. E torna-se curioso como um homem que admite ter muito medo da morte se acaba por suicidar.

Raskolnikov entrega-se para continuar a viver. Embora hajam alturas em que não consegue perceber porque não acabou com tudo antes e aceitou suportar o fardo dos trabalhos pesados pelo único propósito, insatisfatório, de simplesmente existir. "Viver para quê? Com que objectivos? Com que aspirações? Viver para existir? Mas, se já antes ele estava mil vezes pronto a trocar a existência por uma ideia, por uma esperança, até por uma fantasia! Existir, apenas, nunca tinha sido bastante para ele, sempre quisera mais. Talvez tivesse sido só por força dos seus desejos que se considerara a si mesmo como um homem a quem era permitido mais que os outros. Se ao menos o destino lhe enviasse o arrependimento - um arrependimento pungente, do coração, que tira o sono, que faz sofrer tanto que é preferível a corda ou o afogamento! Oh, seria bem-vindo! Tormento e lágrimas também são vida. Mas não se arrependia do seu crime."

Não se arrepende porque não o considera um crime. "Crime? Qual crime? (...) Matar um piolho nojento e nocivo, uma velha agiota, uma inútil, que sugava o sangue dos pobres... isso é crime? Não penso assim, nem penso remi-lo. Por que me repetem de todos os lados: «crime, crime»?"; "Todos derramam sangue (...), o sangue corre e sempre correu no mundo em catadupas, todos o vertem como champanhe e são por isso coroados no Capitólio e denominados depois benfeitores da humanidade. Olha melhor e vê! Eu quis fazer bem às pessoas e faria centenas, milhares de boas acções em vez desta asneira única, que nem asneira foi, mas uma coisa sem jeito, porque toda a ideia não era tão estúpida como parece agora, que falhou... (com o falhanço, tudo parece estúpido!). Com esta asneira queria apenas colocar-me numa posição independente, dar um primeiro passo, obter recursos, e depois seria tudo expiado por uma utilidade incomensuravelmente maior do que aquilo... Mas nem no primeiro passo me aguentei (...)"

A divisão da sociedade entre pessoas "vulgares" e "invulgares", e o que é moralmente aceitável ou inaceitável para uns e outros é uma ideia gira. Inaceitável nos dias que correm (e nos que corriam, também), mas gira. Que as pessoas invulgares podiam matar sem pena, se fosse para atingir coisas maiores e melhores. Dá o exemplo de Napoleão, das guerras, das chacinas, mas que, no fim, foi coroado e se criou todo aquele mediatismo à volta dos seus feitos. Que, segundo ele, foi isso que fez. Matar era apenas o tal pequeno passo. As pessoas "vulgares" não passavam de matéria-prima. Claro que isto não faz qualquer sentido se se pensar bem no caso. Segundo esta teoria, Hitler teria tido desculpa para todos os horrores que fez, porque fê-los para atingir um bem maior - bem maior, claro, segundo as suas ideias de bem, mal e moralmente correcto. Mas a ideia está tão bem estruturada que se torna cativante e suficientemente plausível para ser realmente um motivo para o "crime".

Desta feita, vou ver se faço as pazes com o género fantástico com o Livro do Deslumbramento de Lord Dunsany. A seguir, ou se me chatear mortalmente (o que me costuma acontecer com fantasia), volto para o meu adorado Tolstoi. E depois logo se vê. Tenho aí ainda tanta coisa que não tenho vontade mas que tem que ser. Custa-me vê-los na prateleira sem serem mexidos.

:pseudo:

No comments: